Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:
se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:
se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.
Desde o princípio, por tudo o que já fez, Ferreira Gullar sempre nos deixou esperando a grande poesia. E ela veio de novo calmamente, depois de um silêncio profundo,como um tumulto; chegou agora com Muitas Vozes. Há muito não se juntavam, na poesia brasileira, tantas coisas belas numa safra só.
Foi preciso muita coisa passar: o exílio, depois a morte rondar perto, familiar e sem ênfase; os mortos restarem no abandono do chão impenetrável; o silêncio crescer dos ausentes ao cosmos, até a estridência. E ainda assim de tudo ficar um pouco - o galo saiu de entre as plantas em novo anúncio; Cláudia Ahimsa virou musa do planeta Terra; o bem-te-vi cantou de volta em São Luís -, para só então a poesia mostrar-se como não-coisa, como voz, essa voz que somos nós, que não alcança o ser da coisa, que quer ser coisa na linguagem do poema, e é apenas som.
Mas som com sentido: testemunho de nossa precária condição frente aos astros e à única eternidade que de fato conhecemos, a do instante de vida: a polpa, o gosto vivo da fruta, o momento do sexo, tudo na íntegra irrecuperável na Palavra. Gullar ouve as vibrações do mito, mas tem os pés no chão e a escuta dos homens. Recolhe a poesia das vozes entrelaçadas à sua, com toda a simplicidade. A grande poesia pode estar ao rés da fala e ao alcance dos ouvidos. .
No oco da voz (do poema) se forma o sentido que o poeta atribui às coisas que não o têm e cujo ser resta impenetrável para ele como o morto na cova. A força do concreto vem, no entanto, do instante de vida que fica na memória e toma forma poética na linguagem: a voz que não quer se apagar, que repete outras vozes mortas e refaz com palavras o gosto de alegria da hortelã, ou o que, intangível, adeja/ acima/ do que a morte beija.
A complexidade da síntese poética que se acha neste livro em que os temas da identidade, do tempo e da linguagem se defrontam com o silêncio e a morte é o resultado formal de uma longa e densa experiência. É importante observar que o processo de constituição dessa experiência foi exposto, em boa parte, no relato notável de suas memórias do exílio, Rabo de Foguete. Nele o drama vivido pelo poeta à mercê das circunstâncias políticas da história recente da América Latina se converte, mediante uma narrativa próxima do romance, num processo de escavação da subjetividade atravessada pela experiência histórica. A poesia - O Poema Sujo - surge então, em em meio ao sofrimento,como o último reduto da identidade pessoal frente às catástrofes do mundo contemporâneo.
Foi preciso muita coisa passar: o exílio, depois a morte rondar perto, familiar e sem ênfase; os mortos restarem no abandono do chão impenetrável; o silêncio crescer dos ausentes ao cosmos, até a estridência. E ainda assim de tudo ficar um pouco - o galo saiu de entre as plantas em novo anúncio; Cláudia Ahimsa virou musa do planeta Terra; o bem-te-vi cantou de volta em São Luís -, para só então a poesia mostrar-se como não-coisa, como voz, essa voz que somos nós, que não alcança o ser da coisa, que quer ser coisa na linguagem do poema, e é apenas som.
Mas som com sentido: testemunho de nossa precária condição frente aos astros e à única eternidade que de fato conhecemos, a do instante de vida: a polpa, o gosto vivo da fruta, o momento do sexo, tudo na íntegra irrecuperável na Palavra. Gullar ouve as vibrações do mito, mas tem os pés no chão e a escuta dos homens. Recolhe a poesia das vozes entrelaçadas à sua, com toda a simplicidade. A grande poesia pode estar ao rés da fala e ao alcance dos ouvidos. .
No oco da voz (do poema) se forma o sentido que o poeta atribui às coisas que não o têm e cujo ser resta impenetrável para ele como o morto na cova. A força do concreto vem, no entanto, do instante de vida que fica na memória e toma forma poética na linguagem: a voz que não quer se apagar, que repete outras vozes mortas e refaz com palavras o gosto de alegria da hortelã, ou o que, intangível, adeja/ acima/ do que a morte beija.
A complexidade da síntese poética que se acha neste livro em que os temas da identidade, do tempo e da linguagem se defrontam com o silêncio e a morte é o resultado formal de uma longa e densa experiência. É importante observar que o processo de constituição dessa experiência foi exposto, em boa parte, no relato notável de suas memórias do exílio, Rabo de Foguete. Nele o drama vivido pelo poeta à mercê das circunstâncias políticas da história recente da América Latina se converte, mediante uma narrativa próxima do romance, num processo de escavação da subjetividade atravessada pela experiência histórica. A poesia - O Poema Sujo - surge então, em em meio ao sofrimento,como o último reduto da identidade pessoal frente às catástrofes do mundo contemporâneo.
Mas, nesse embate, é a morte que já ronda na pegada dos desastres, exigindo um outro sentimento do tempo e um novo aprendizado. Como é próprio de seu modo de ser, a forma do romance se desdobra no processo de aprendizagem, quando faltam regras de como proceder, e, justamente essa insuficiência se toma fato no enredo. Rabo de Foguete - coloca essa questão desde o começo, ao relatar os rumos da existência errante depois que a vida virou de cabeça para baixo. A poesia vem agora resgatar em fortes e vívidas imagens os guardados da memória.
Sob muitos aspectos, a matéria deste livro é a mesma, configurada, porém, em ritmo de verso, com outra concentração e intensidade. Não mais sob o hausto longo da narração, mesmo se na cadência entrecortada pelos capítulos curtos das memórias, mas, sim, condensada no instantâneo, recorta do fundo histórico e pessoal da experiência seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. Na verdade, figuras de uma dança da morte, que o poeta traz de novo à nossa presença, não pela mão, como no tópico medieval da dança macabra, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua, a voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Cabral, Rilke. Comoventes poemas breves em que se tece na forma quebrada do ritmo o diálogo interrompido com os mortos: Thereza, Visita, Internação, Meu Pai, Evocação de Silêncios, 0 Morto e o Vivo. Complexos e límpidos poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: Nasce o Poeta, Adormecer, Tato, Reflexão, Aprendizado, Lição de um Gato Siamês, Não-Coisa, Isto e Aquilo. Extraordinários poemas longos de pressentimento e antecipação da morte: Nova Concepção da Morte, Morrer no Rio de Janeiro. E ainda muito mais, belos poemas, eróticos e de exaltação da vida e seus instantes fugazes: Definição da Moça, Sortilégio, Coito, Improviso Matinal, Pergunta e Resposta. .
A atitude do homem comum, sem lugar entre a pretensão e a humildade, exposto com todas as suas fragilidades, exatamente como nas memórias, está de novo presente aqui. Com efeito, é um homem frágil quem está atrás da voz que nos fala, sozinho como o caniço pensante de Pascal em face do infinito silêncio do cosmo. 0 poeta que reconhece que a poesia/ é saber falhar. Ou aquele que, ao sentir-se a si mesmo pelo tato, diante da certeza invencível da morte, também se dá conta da realidade palpável de sua presença no mundo. É na solidão cósmica, isolado dos mortos queridos onde o poema é apenas um inaudível ruído em meio à vastidão indiferente do universo, que o poeta se reconhece no pequeno sinal de vida, capaz, no entanto, de iluminar aos nossos olhos não só a morte, mas também o amor e o gosto da vida.
A lírica se exprime aqui nos ocos de uma história vivida e lembrada, talhada no corte breve e emocionante do poema, supondo, porém, o processo oculto de um aprendizado diante do que arrasta a tudo e a todos junto com o próprio poeta e que está além de toda experiência possível: a morte que o tempo traz implacavelmente e o poeta experiente espera sem ênfase, 'mera noção que existe/ só enquanto existo', o fim que está fora de seu alcance.
Depois de 12 anos de silêncio, oculta como a natureza, a poesia volta ao sol do Rio, à luz de São Luís. Não se podia pedir mais a Gullar.
Sob muitos aspectos, a matéria deste livro é a mesma, configurada, porém, em ritmo de verso, com outra concentração e intensidade. Não mais sob o hausto longo da narração, mesmo se na cadência entrecortada pelos capítulos curtos das memórias, mas, sim, condensada no instantâneo, recorta do fundo histórico e pessoal da experiência seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. Na verdade, figuras de uma dança da morte, que o poeta traz de novo à nossa presença, não pela mão, como no tópico medieval da dança macabra, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua, a voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Cabral, Rilke. Comoventes poemas breves em que se tece na forma quebrada do ritmo o diálogo interrompido com os mortos: Thereza, Visita, Internação, Meu Pai, Evocação de Silêncios, 0 Morto e o Vivo. Complexos e límpidos poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: Nasce o Poeta, Adormecer, Tato, Reflexão, Aprendizado, Lição de um Gato Siamês, Não-Coisa, Isto e Aquilo. Extraordinários poemas longos de pressentimento e antecipação da morte: Nova Concepção da Morte, Morrer no Rio de Janeiro. E ainda muito mais, belos poemas, eróticos e de exaltação da vida e seus instantes fugazes: Definição da Moça, Sortilégio, Coito, Improviso Matinal, Pergunta e Resposta. .
A atitude do homem comum, sem lugar entre a pretensão e a humildade, exposto com todas as suas fragilidades, exatamente como nas memórias, está de novo presente aqui. Com efeito, é um homem frágil quem está atrás da voz que nos fala, sozinho como o caniço pensante de Pascal em face do infinito silêncio do cosmo. 0 poeta que reconhece que a poesia/ é saber falhar. Ou aquele que, ao sentir-se a si mesmo pelo tato, diante da certeza invencível da morte, também se dá conta da realidade palpável de sua presença no mundo. É na solidão cósmica, isolado dos mortos queridos onde o poema é apenas um inaudível ruído em meio à vastidão indiferente do universo, que o poeta se reconhece no pequeno sinal de vida, capaz, no entanto, de iluminar aos nossos olhos não só a morte, mas também o amor e o gosto da vida.
A lírica se exprime aqui nos ocos de uma história vivida e lembrada, talhada no corte breve e emocionante do poema, supondo, porém, o processo oculto de um aprendizado diante do que arrasta a tudo e a todos junto com o próprio poeta e que está além de toda experiência possível: a morte que o tempo traz implacavelmente e o poeta experiente espera sem ênfase, 'mera noção que existe/ só enquanto existo', o fim que está fora de seu alcance.
Depois de 12 anos de silêncio, oculta como a natureza, a poesia volta ao sol do Rio, à luz de São Luís. Não se podia pedir mais a Gullar.
Muitas Vozes Ferreira Gullar